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"Profissionais de saúde negros são subjulgados e desvalorizados por conta do racismo estrutural"

Atualizado: 5 de nov. de 2020

Por Rithyele Dantas


"Eu nem sabia o que significaria fazer medicina, mas aos 10 anos, coloquei na cabeça que faria"


Foi assim que a doutora Rita Helena do Espírito Santo Borret, de 32 anos, mulher negra, nascida e crescida em Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, começou nossa conversa. O objetivo de se tornar médica a tomou logo cedo, após sucessivas experiências traumáticas na saúde pública. Rita perdeu seu avô e seu tio de infarto. Por negligência num hospital público da cidade, também quase perdeu seu pai.

"Quero fazer o melhor cuidado em saúde possível para quem mais precisa."

Pessoas negras médicas representam menos de 18% dos médicos brasileiros no setor público, segundo pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um número muito discrepante se considerada a quantidade de pessoas autodeclaradas negras (pretas e pardas) no Brasil, que somam 54%, de acordo com o IBGE.

É fato: o número de pessoas negras e de baixa renda cresceu nas universidades desde a adoção das cotas, no entanto, alguns cursos, como a medicina, seguem reservados a quem tem mais condições financeiras, portanto, no Brasil, principalmente às pessoas brancas, já que negros são 75% entre a população mais pobre do país, também segundo o IBGE.


Não por acaso, Rita também relata os desafios de ter sido uma das únicas duas pessoas negras na turma de medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde se formou em 2012.

"A faculdade de medicina foi um espaço difícil, eu me sentia sozinha, sem referência e isso contrariava as minhas expectativas do que seria aquele espaço."



O desconforto não desapareceu em nenhum momento no curso de medicina, mas um profundo encantamento apareceu quando Rita conheceu a Medicina da Família. A então estudante fez residência médica na Clínica da Família do Catete, na zona sul do Rio, atendendo a moradores da comunidade do Santo Amaro.


"Estar com aquelas pessoas faz sentido pra mim"


Desde então Rita nunca mais quis saber de outra especialidade. Hoje é mestra em Atenção Primária, doutoranda em Saúde Pública e atua no Jacarezinho, favela da zona norte do Rio, onde se depara diariamente com os desafios impostos pelas desigualdades.


"Tem pessoas que esquecem que têm direitos a ter direitos" disse a médica repetidas vezes.

Dentro de casa, Rita sempre foi incentivada a estudar. Seus pais, também pessoas negras, tinham formação superior. O pai, Almir Rosa Borret, é engenheiro agrônomo formado na UFRRJ e sua mãe, Sônia do Espírito Santo Borret, engenheira civil formada na UFRJ.

COVID-19 NAS FAVELAS

"Foi em março que minha ficha caiu, foi tudo muito rápido e eu só pensava: como lidar com a pandemia no segundo país mais desigual do mundo?"


A médica também teve COVID-19 junto a pelo menos outros vinte profissionais que trabalham na mesma unidade de saúde. Conta que se sentia muito angustiada em ver tantos pacientes morrerem e ela sem poder ajudar.

"Quando vi as medidas propostas para diminuir a contaminação pensei: como isso se aplica às favelas? Essas medidas foram pensadas para quem tem trabalho formal. Na favela tem muita informalidade. Muita gente seguiu nas ruas, eu até reproduzir a crítica às pessoas que iam pra rua nas favelas. Mas naquele lugar, as pessoas não deixam de ter medo, elas tem sim medo do vírus, mas ele é invisível, a desigualdade, o medo de perder o emprego, a fonte de renda e a capacidade de colocar comida na mesa é muito maior (...) No meio da pandemia, uma operação nos obrigou a levar todas as pessoas para o mesmo espaço, contaminados e não contaminados, pelo medo do que era real e visível: a violência."


A doutora Rita é uma das integrantes do Grupo de Trabalho da Saúde da População Negra e foi uma das profissionais de saúde responsáveis por criar um manual de orientações para favelas e periferias do Rio de janeiro.


"Tudo o que a gente via na televisão não tinha o menor sentido. Eu comecei a perder seis, sete pacientes na mesma rua. Outra coisa difícil foi ter que acolher tanta gente, pessoas que não puderam fazer ritual de despedida e isso significa, muitas vezes, uma dificuldade de romper um ciclo."


A médica também relembra quando precisou dar um atestado de 14 dias pela primeira vez: "Rita, você tem certeza que eu preciso disso tudo? Eu posso entrar na lista para ser demitido".

"As pessoas queriam muito que os moradores do Jacarezinho protegessem a sociedade, mas ninguém queria proteger o Jacarezinho do vírus"


Muitas redes em favelas e periferias do Rio de Janeiro se formaram e se estruturaram rapidamente para diminuir os impactos do Coronavírus nas favelas. Campanhas como COVID nas Favelas, A Maré Diz Não Ao Coronavírus, além de mobilização de coletivos como Rocinha Resiste, Fala Akari entre outras. Um vírus que chegou pelas classes médias e altas rapidamente se espalhou entre a população mais pobre e negra. Hoje o vírus é mais letal entre pretos e pardos, segundo dados da Pontifícia Universidade Católica (PUC).


SUS E O SERVIÇO PÚBLICO

Rita é uma de tantas brasileiras que demonstra, em qualquer trecho de sua conversa, vocação e dedicação ao serviço público. Cidadã, é uma entre as milhões de pessoas que entendem a importância do Serviço Único de Saúde.


"Quando entrei na universidade federal, minha expectativa era voltar nossa formação para o SUS, mas não aconteceu dessa maneira. Minha impressão é de que era voltada para o mercado privado e isso me deixou muito irritada. Desde que me formei e tive a oportunidade de estar no SUS, achei que ali era um espaço onde eu poderia estimular e favorecer a vivência de cidadania. Estar no serviço público é estar em espaço de cidadania. Fazer um cuidado em saúde antirracista não deveria ser papel dos médicos negros."


ONDE ESTÃO OS NEGROS NA SAÚDE PÚBLICA?

Apesar da contundente crítica aos obstáculos enfrentados diante do racismo mesmo dentro de unidades de saúde, Rita se mostra empolgada com a capacidade de realização do coletivo. Acostumados a aquilombar, a se reunir em grupo para resistir, os profissionais negros têm uma grande capacidade de superar desafios trabalhando em equipes.

"Muitas vezes os profissionais de saúde negros são subjulgados e desvalorizados por conta do racismo estrutural. Mas ao mesmo tempo buscamos caminhos para nos fortalecer. Temos uma ancestralidade forte, precisamos nos aquilombar. Dentro da atenção primária tenho visto a força do coletivo. Sozinho, muitas vezes não temos força para transformar nada, mas quando estamos juntos elaboramos como colocar em pauta a saúde da população negra. Precisamos considerar o racismo um fator de adoecimento. Queremos que no futuro pessoas negras que entrem na saúde não enfrentam os desafios que enfrentamos hoje".


Confira a entrevista da lendária Zezé Motta com a doutora Rita Helena:




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