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Bisneta de escravizada, Maria Lúcia é funcionária pública negra na linha de frente contra o COVID-19

Atualizado: 19 de nov. de 2020

Por Rithyele Dantas

Maria Lúcia Pereira - ou Malu - como prefere ser chamada, tem 54 anos. Ela nasceu no interior do Rio Grande do Sul, na cidade de Taquari, 100 quilômetros longe de Porto Alegre. É bisneta de mulher escravizada, neta de lavadeira e de parteira. Faz parte daquele grande grupo de pessoas negras que é de uma das primeiras gerações da família que teve acesso à universidade.


Atualmente, Malu é profissional pública da saúde. Há 24 anos atua como enfermeira assistencial em um hospital da capital Porto Alegre. Malu foi e ainda é linha de frente de muitas tragédias que assolaram seu Estado. Nesta entrevista, que faz parte da série da República.org "Onde estão os negros no serviço público?", ela fala de racismo na saúde e dos maiores desafios que já enfrentou na carreira.



Leia a entrevista abaixo. Republica.org: Quais foram os momentos mais marcantes da sua carreira como profissional da saúde?

Maria Lúcia Pereira: Algumas das coisas mais marcantes foram a gripe A, o incêndio na boate Kiss e agora a pandemia de COVID-19. Trabalhar com tragédia é um desafio constante, mas com tempo de profissão a gente vai aprendendo a escutar e entender um pouco a necessidade das pessoas e como a gente pode ajudar. Quando teve o incêndio na Boate Kiss (tragédia em Santa Maria que matou 242 pessoas e deixou mais de 650 feridas), eu estava de plantão e recebemos a notícia de que as pessoas com as maiores queimaduras iam pro hospital. O primeiro momento marcante foram dos helicópteros chegando. O segundo foi ver o tamanho dos curativos que precisávamos fazer. A gente tinha um cheiro de carne queimada, era algo muito louco.

Agora sobre o COVID-19: como você recebeu a notícia ou se deu conta de que a pandemia ia ser um grande problema pro Brasil e em especial para o sistema público?

ML: Foi no dia 15 de março, quando foi decretado o fechamento das universidades e comércios. Era muita coisa nova: roupas, isolamento, como manter a unidade funcionando e, ao mesmo tempo, funcionários adoecendo e tendo que se internar, pessoas morrendo. No começo, em Porto Alegre, eram pessoas ricas que estavam lotando os hospitais privados, mas quando chegou na periferia, a população pobre e negra começou a morrer.

E o que mais passava pela sua cabeça?

ML: Eu até hoje me pergunto se não poderia ter sido de outra maneira. Se a saúde pública não fosse tão precarizada, eu acho que as pessoas poderiam ter sido atendidas em seus bairros. Se todo mundo tivesse esgoto, rede básica organizada, acolhimento, as pessoas pobres morreriam menos de COVID-19.

E mesmo com todos os desafios da saúde pública, por que você a escolheu?

ML: Eu estudei em universidade privada e lá não tinha a hospital escola. Eu sempre quis trabalhar em hospital público porque é aqui onde o conhecimento chega.

Agora entrando na pauta da nossa campanha: há diferença em ser uma enfermeira negra?

Há toda diferença! Tem enfermeiros brancos no hospital, que quando algum paciente chega pálido por algum motivo, eles nem ao menos conseguem identificar se essas pessoas são negras. Quando uma mulher negra chega com um sangramento uterino, tem gente que acha que ela fez aborto. Há um estigma. Pessoas negras têm especificidades também na saúde. E também é muito legal quando um paciente negro se identifica comigo, isso gera uma maior confiança.

Quais desafios você encontrou no caminho por ser uma enfermeira negra?

ML: Já passei por situações bem difíceis. Uma vez me chamaram para fazer a seleção de técnicas e auxiliares para uma clínica de reprodução assistida. Selecionei 6 mulheres com as qualificações exigidas e, por um acaso, todas eram negras. Cheguei para a coordenadora com os currículos, ela riu da minha cara e perguntou se eu estava louca. Também passei por situações nas quais os pacientes se recusaram a serem atendidos por mim.

Onde estão os negros na saúde pública?

No meu hospital, de centenas de enfermeiras brancas, 17 são negras. Nós passamos muitas situações constrangedoras dentro e fora do serviço público. Mas nós sabemos a importância do SUS, ele nos permite trabalhar de forma integral. O Rio Grande do Sul é realmente muito racista e nós precisamos nos fortalecer. Leio muitas mulheres negras, como Sueli Carneiro, para ficar forte, chegar inteira e plena no trabalho.


Mariana Nunes entrevistas a Enfermeira Maria Lúcia:



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